quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Desprezo

Desprezo era um lugarejo. Acho que lugar desprezado é mais triste do que abandonado. Não sei por quê caminhos o mundo me tirou do Desprezo para este Posto de gasolina na estrada que vai para São Paulo. Acho quase um milagre. Quando a gente morava no Desprezo ele já era desprezado. Restavam três casas em pé. E três famílias com oito guris que corriam pelas estradas já cobertas de mato. Eu era um dos oito guris. Agora estou aqui botando gasolina para os potentados. Naquele tempo do Desprezo eu queria ser chão, isto ser: para que em mim as árvores crescessem. Para que sobre mim as conchas se formassem. Eu queria ser chão no tempo do Desprezo para que em mim os rios corressem. Me lembro que os moradores do Desprezo, incluindo os oito guris, todos queriam ser aves ou coisas ou novas pessoas. Isso quer dizer que os moradores do Desprezo queriam ficar livres para outros seres. Até ser chão servia como era o meu caso. Ninguém era responsável pelas preferências dos outros. Nem isso era uma brincadeira. Podia ser um sonho saído do Desprezo. Uma senhora de nome Ana Belona queria ser árvore para ter gorjeios. Ela falou que não queria mais moer solidão. Tinha um homem com o olhar sujo de dor que catava o cisco mais nobre do lugar para construir outra casa. Não sei por quê aquele homem com olhar sujo de dor queria permanecer no Desprezo. Eu não sei nada sobre as grandes coisas do mundo, mas sobre as pequenas eu sei menos.


– VII - Desprezo, in Memórias Inventadas — Segunda Infância, por Manoel de Barros